domingo, fevereiro 04, 2007

O Internato

O prédio tinha arquitetura antiga, possivelmente do século XXI. Um grande jardim à frente, com uma fonte logo na entrada, depois da qual a estrada dividia-se em duas. Uma via levava diretamente ao estacionamento e a outra conduzia o viajante até a entrada do prédio principal, onde, logo à frente, lia-se Centro de Educação Infantil São João. A placa era feita de aço e os dizeres estavam em baixo relevo.

Ali dentro funcionava uma espécie de internato, onde cerca de duzentas crianças recebiam a educação que seus pais não poderiam pagar. O internato cuidava da criação e da educação das crianças e, a partir dos dezoito anos, estes jovens eram devolvidos às suas famílias. Muitos pais viam isso como um milagre do sistema, mas alguns estudiosos já haviam alertado sobre a possível infecção que o sistema poderia lhes causar.

O carro preto parou bem à frente da escadaria que conduzia ao hall. Ali desceram dois homens, muito bem trajados em ternos pretos, com gravatas vermelhas e um broche onde podia-se ler a seguinte sigla: ACSR [Agência Central de Segurança da Rede]. Um outro homem, vestindo roupas sociais mais folgadas os aguardava. Ele era obeso e suava muito para um dia frio como aquele.

- Devo imaginar que o senhor é o diretor deste estabelecimento. Meu nome é Carlos Andrade e este é meu assistente e parceiro, senhor Carlos Antunes. – apresentou-se o mais alto dos dois recém-chegados.

- Sim. Está correto. Meu nome é Luiz. Diretor Luiz, como me chamam por aqui. – o homem sorriu, imaginando que deixaria o clima mais ameno, porém, nenhum dos seus convidados pareceram achar graça.

- Senhor diretor Luiz. Vamos ao que nos interessa. Minha agência foi informada que vocês possuem aqui uma criança superdotada. E cabe a nós definir quais suas habilidades e, se tudo correr bem, levá-la daqui para centros de estudo onde suas capacidades serão de grande valia a avanços científicos e tecnológicos no futuro. Aqui estão os papéis que autorizam sua transferência e o ressarcimento de suas despesas. – assim que proferiu as palavras, o agente Antunes abriu a maleta que carregava e tirou um calhamaço de papéis.

- Certo. Bom... Acompanhem-me. – o suor frio escorria pela testa do diretor. Ele já havia ouvido falar desses homens e do poder que agência representava, mas, no entanto, jamais havia imaginado que algum dia teria que lidar com eles.

Os três homens passaram pela porta dupla que os aguardava no final da escadaria. Ali, diante deles, estendia-se um longo corredor com muitas portas de ambos os lados. A secretaria da escola, departamentos e outras salas menores, para cafés e reuniões. Ao fundo do corredor, outra porta dupla, de madeira escura, aparecia. Na parede logo acima do portal lia-se “Pátio Central”.

Era hora do recreio e todas as crianças iam para os pátios no centro do edifício. O pátio central, o maior deles, ficava sempre cheio de crianças, sendo vigiados incessantemente por professores e câmeras de segurança. O diretor e os dois agentes cruzaram o pátio e subiram outra escadaria. Em outro corredor, eles caminharam alguns metros até que entraram em uma sala ampla, com dezenas de mesas. Em cada mesa existia um par de monitores, onde as crianças aprendiam os conceitos básicos da informática e tinham seu contato mais constante com o mundo conectado. Cada aluno passava cerca de seis horas por dia navegando e aprendendo coisas como segurança virtual, programação básica, montagem de hardware e coisas do tipo.

A sala de informática estava vazia. Apenas um homem estava ali, mexendo em uma das máquinas. Assim que entrou na sala, o diretor pediu ao homem que se apresentasse aos agentes e explicasse a situação.

- Bom dia senhores. Eu sou o professor Leandro. Sou responsável pelas aulas de informática para a turma onde a pequena Raquel estuda. Acho que tenho que dizer que sempre me esforcei ao máximo e também fiz muitos cursos... – antes que o professor se alongasse em sua formação curricular, o agente Andrade o interrompeu.

- Professor, estamos cientes de suas capacidades e de sua competência, mas nos interessa saber o que houve aqui. Pelo relatório que recebi, parece-me que algum de seus alunos escreveu um programa cujos métodos e funções estão além de sua capacidade estatística. Que programa é esse?

- Bem... É este aqui.

O professor apertou uma tecla e um projetor mostrou uma tela de computador na grande parede branca no fundo da sala. Podia-se ver a tela padrão do sistema operacional e todos seus programas comuns. Nada parecia diferente, a não ser por um pequeno ícone no canto superior direito, com a imagem de um relógio. O professor Leandro clicou no programa duas vezes e uma tela se abriu. Ali, o tempo corria em contagem regressiva e a seguinte mensagem era lida: “Programa ativado. Compilação de todo o sistema em andamento. Função delete ativada em comando pós-operação concluída.” Em outras palavras entendia-se que o programa faria uma cópia de todo o sistema da escola e depois deletaria o sistema original, mantendo a cópia em algum lugar. Restaria descobrir que lugar era esse. E, o mais importante, qual aluno escrevera o programa?

- Professor... O senhor disse que leciona os cursos básicos.

- Sim.

- Mas este tipo de programação é muito avançada até mesmo para aqueles que estariam nos cursos intermediários.

- Sim, senhor. – afirmou o professor.

- Então há algo de errado aqui. Quem, afinal, fez este programa se seus alunos são todos com idade entre 8 e 10 anos? – perguntou o agente Andrade verificando alguns papéis que o seu assistente acabara de lhe passar.

- Este é o problema, sr. Inspetor – explicou o professor – quem fez esse programa foi uma aluna chamada Raquel, que tem 9 anos. Ela é, definitivamente, mais que uma criança superdotada.

- O senhor tem certeza disso, professor? – questionou o diretor retoricamente.

- Sim. Eu acessei seus arquivos e encontrei alguns rascunhos de códigos-fonte. Só pode ter sido ela. – retrucou o professor repassando outros papéis com milhares de codificações de programação para os agentes.

O agente Andrade leu os códigos por alguns instantes. Olhou para o professor e depois para o diretor. Tirou um cigarro de uma caixinha de metal e o acendeu. Depois do primeiro trago ele voltou a ler algumas páginas.

- Senhor diretor Luiz, podia nos fazer o favor de chamar aqui a pequena Raquel? Preciso confirmar isso imediatamente. – o agente Andrade mal olhou para o diretor enquanto fazia a solicitação. Mantinha os olhos fixamente nos papéis com os códigos.

- Claro. – o diretor retirou um lenço do bolso e passou por toda sua testa e em volta do pescoço. – Professor Leandro. Faça-nos a gentileza de trazer sua aluna?

O professor saiu às pressas. Assim que passou pela porta o agente Antunes abriu a maleta e retirou dela um caixa pequena, de metal prateado. O agente Andrade colocou os papéis sobre uma das mesas e se aproximou do diretor.

- Diretor Luiz. Está ciente que teremos que transferir sua aluna para uma de nossas unidades imediatamente? Não poderemos garantir que ela volte para sua instituição. Caberá ao senhor manter a família da pequena a salvo, se é que pode me entender.

- Entendo. Nós os manteremos bem informados sobre os avanços de sua filha em nossa instituição. Tenho certeza que acreditarão que ela jamais saiu daqui. – informou o diretor acendendo também um cigarro.

- Ótimo. Providenciaremos para que seus pais sejam enquadrados em algum tipo de delito que não os faça mal, mas que os coloque atrás das grades por alguns anos, até que a jovem Raquel tenha sido curada de sua enfermidade. – Andrade olhou para o agente Antunes já tinha um laptop montado em uma das mesas, provavelmente vindo daquela caixa de metal, da qual, agora, retirava alguns fios e os ligava na máquina onde o programa estava rodando.

- Senhor. Estou pronto para acessar o programa. Podemos? – Antunes sentou-se e começou a digitar. Ele agora tentaria desativar o programa e liberar o sistema da escola de danos mais graves.

- Claro. Corrija esse problema. – ordenou Andrade.

Alguns instantes depois o professor Leandro entra na sala. De mãos dadas a ele caminha a menina Raquel. Cabelos escuros, anelados e olhos castanhos, Raquel tinha a voz meiga e os dedos finos.

“Dedos de digitador profissional” pensou Andrade, lembrando-se de uma anedota que seu instrutor na Agência usava rotineiramente.

O agente Andrade ajoelhou-se frente à menina, pôs o cigarro de lado e se aproximou dela. A menina o encarou sem medo e soltou as mãos do professor, cruzando os braços.

- Olá Raquel. Eu sou o senhor Andrade, e aquele ali, no computador, é o meu amigo, o senhor Antunes. Viemos aqui porque seu professor, nosso amigo, nos contou que lecionava para uma menina-gênio. Somos professores de uma escola famosa, que dá aula para os melhores. O professor Leandro nos disse que foi você quem fez esse programa que está na tela. Isso é verdade, Raquel? – o agente Andrade havia mudado o tom da voz e falava tão carinhosamente com a menina que alguns poderiam dizer que eram parentes bem próximos.

- Foi sim. Eu fiz, mas não consigo desligar. Não fiz por mal, sabe? Estava apenas testando umas coisas que aprendi. – a menina respondeu receosa, mas mantendo a voz firme.

- Hummmm. Interessante. Não se preocupe Raquel. Está tudo bem, mas, por favor, me diga uma coisa. Você aprendeu isso com quem? Com seu professor Leandro? – o coração do professor foi a mil. Ele sabia que se a criança dissesse que sim, mesmo que de brincadeira, uma vez que nem ele sabia programar aquilo, ele teria sérios problemas com o governo e sua carreira estaria acabada. O agente Andrade encarou-o e o professor começou a suar, temendo pelo que não havia feito.

- Não – respondeu a garotinha – não foi o professor não. Ele nem sabia que eu fazia isso. Foi um amigo da Internet. Ele que me ensinou.

- Ah. Então foi um amigo da Internet? Que bom saber que você tem amigos na Internet, Raquel. Eu também tenho muitos, sabia? Será que esse seu amigo é amigo meu também? Qual o nome dele?

A menina pensou por alguns instantes, olhando para baixo. Depois encarou o agente mais uma vez e disse.

- O nome dele eu não sei. Mas o nick dele é BIT. Ele é amigo seu?

Todos na sala estremeceram. O próprio agente Antunes, que estava concentrado no computador parou de digitar e olhou para a garota. O agente Andrade foi surpreendido mas não perdeu a compostura e não fugiu de seu modus operandi.

- Tem certeza, Raquel? O nome dele é BIT? – perguntou mais uma vez o agente passando a mão na cabeça da menina.

- Sim senhor. Isso mesmo.

O agente se levantou, tirando do bolso um comunicador. Afastou-se um pouco do diretor e do professor. Pegou um pedaço de papel e anotou o seguinte: “Passe-me o ID desse lugar na Rede V. Vou pedir uma varredura total.”

O agente Antunes fez alguns comandos no computador e depois anotou a numeração no mesmo papel. Nesse tempo, seu parceiro já havia entrado em contato com a Central e pedido que varressem um determinado lugar, onde possivelmente o ciber-terrorista chamado BIT havia navegado. Um de seus contatos freqüentes era um internato. E então repassou pelo fone a numeração que Antunes havia lhe dado.

Andrade desligou o fone e fez outra chamada enquanto pegava a ficha de Raquel. Leu-a cuidadosamente. Raquel Moreira Vaz.

- Central de Correções, por favor. Obrigado. É o agente Carlos Andrade. Código de identificação número 75531. Preciso que implante um Código 3 nos pais biológicos da seguinte criança: Raquel Moreira Vaz, nove anos. Mantenha-os presos por nove anos, nem mais, nem menos que isso. Certo. Informe ao diretor que nesta tarde eu me reúno com ele para explicar a situação. Obrigado mais uma vez.

Assim que terminou a ligação percebeu que o agente Antunes não estava mais concentrado no computador e estranhou.

- Já terminou?

- Não senhor, chefe. Tive um problema. – o agente parecia pálido e chegou a gaguejar.

- O que houve homem? Por que não termina? – Andrade se aproximou da máquina e percebeu que o programa ainda rodava, e que a contagem regressiva agora estava mais acelerada.

- Senhor – gaguejou o outro agente – o programa da garota acabou de hackear o meu computador e destruiu o disco. Parece que essa garotinha é mais perigosa que parece.

- Antunes... Você não faz idéia do perigo que ela representa. Se com 9 anos ela pode fazer isso, com 20 ela pode causar sérios danos ao sistema global. – Andrade acendeu outro cigarro e olhou para a garota que esboçava um leve sorriso, assombrosamente inocente.

sexta-feira, fevereiro 02, 2007

DUELOS DE XADREZ

É vasto o campo por onde desfilam nossas tropas.
Você com suas posses e seus possuídos,
Eu com meus soldados poetas, irmãos de coração,
Sentimentos tão distantes em povos tão iguais.

Eis aí uma guerra que temos que lutar.
Você com suas tropas, ambições e fuzis,
Eu com minhas trupes, paixões e riscas de giz.

Opressão é a palavra que estende-lhe em prosa.
Liberdade é a palavra que estende-nos em verso.
Suas hordas honram-te pelo medo e temor,
Estes soldados aqui honram-se por puro amor.

Campo vasto, de facetas naturais dissonantes,
Seu solo é árido, varrido e tão pueril.
A terra por onde vagamos é das mais verdejantes,
Terra virgem que também já ouviu tiros de fuzil.

Carregue suas armas, traga seus tanques e bombas,
Vista-se para a guerra, com todas suas condecorações,
Pois não abriremos mão de nosso sonho, nossas paixões.

Assuma as consequências pelo teu errôneo pensamento,
Venha para a guerra, vamos duelar em prosa e verso,
Serão nossos últimos dias... Minha morte, seu lamento.

Mova os peões à frente, avance torres e bispos,
Sobrevoe-nos com seus jatos e seu imenso poder de fogo,
Somos iguais, peões com o futuro e a glória de reis,
Para nós é o futuro enquanto para você é apenas um jogo.

Use suas artimanhas, suas chantagens e suas lamúrias,
Batalhe! Somos poetas da paz, mas na guerra somos fúrias.
Ameace-nos com suas mais fortes palavras proféticas,
Enquanto sonharemos eternamente, com veias poéticas.

Suas terras estão cobertas de cinzas e pó,
E do alto de sua torre de marfim encontra-se só.
Rodeado de súditos fraquejantes, incertos de sua ideologia!
Enquanto nós caminhamos livres, cercados de força e poesia!

E no fundo de sua mente você se arrepende dessa ditadura,
Mas os seus erros e os assassinatos nem o tempo cura.
Suas hordas marcham ao ritmo de magníficos tambores,
Nossas trupes correm livres carregadas por tantas flores!

Até quando pensa que poderás deter esta nossa primavera?
Eu posso garantir, tens somente mais alguns anos, talvez.
E sei que você já sente nosso xeque-mate neste grande xadrez.